Incapaz
de andar para frente, o caranguejo metaforiza mais do que a imobilidade
de uma mulher
cujo marido desapareceu na ditadura. É metáfora para uma
sociedade que evita enfrentar – aqui, cabe a
redundância: de frente (como o radical da palavra pede) – a
barbárie cometida durante o regime militar
(1964-1985) no Brasil. Enquanto países vizinhos buscaram
incansavelmente os desaparecidos e puniram os ditadores, aqui
aguarda-se a Comissão da Verdade modificar, quem sabe, um
cenário de apatia pós-anistia. O caminho para
frente está por desbravar.
Mesmo na arte, são escassas
as proposições do olhar igualmente para vítimas,
agressores e colaboradores. Se cabia ao teatro de
resistência à ditadura opor-se o quanto pôde, meio século
depois a equação social exige que se problematize todos os
lados. Pode o maniqueísmo que elege vilões
apaziguar melhor consciências – mas o que seria de Hitler
sem uma população que o apoiasse ou se
omitisse? Encarar os mecanismos deflagradores, legitimadores
e perpetuadores da violência política torna-se novamente
urgente em tempos de novos brados pró-ditadura.
Em “Câmera Escura”, os
autores Carla Kinzo e Marcos Gomes aproximam-se dessa
complexidade a partir da perspectiva de duas gerações.
Alternam-se fragmentos de vida do casal desfeito quando
o marido desaparece aos dramas do filho do desaparecido e da
filha de um médico colaborador do regime. Por meio desta,
a questão do carrasco recebe um primeiro olhar, indireto.
Na impossibilidade de preencher as brechas sem abafar a matéria viva das questões
irrespondíveis sobre o período, o ato de contar a história sobressai à clareza da história
contada. Torna-se difícil distinguir algumas relações entre personagens e fatos narrados, o que pode
gerar leituras confusas. Mas o próprio ato de narrar ganha relevo na voz da mãe, confrontada com a inadequação
das narrativas daquele tempo para fazer uma criança dormir. Aquelas são, sim, histórias para acordar
os homens.
Ossadas não-identificadas deflagram a consciência adormecida dos dois jovens
sobre o passado e suas heranças. Dispositivo assemelhado ao do filme “Corpo”, de Rossana Foglia e Rubens
Rewald. Os restos mortais impõem à geração atual a evidência material de uma realidade ignorada
pela memória.
A estrutura textual de “Câmera Escura” contamina-se por procedimentos da
memória e do cinema. Nas indicações prévias do texto, a dupla de autores escreve que “a
impressão de movimento de quadros parados se dá quando a velocidade mínima de sua projeção
atinge 24 quadros por segundo”. Informação técnica convertida em poética parece ecoar na
encenação dirigida por Maíra Lour. As cenas sucedem-se aquém da velocidade mínima: na iminência
– mas “antes” – de as imagens porem-se em movimento. Retidas pela falta.
O palco nu inicialmente
materializa o vazio – tanto o vazio teatral das ilimitadas
possibilidades
de Peter Brook, quanto o vazio do passado. Helena Portela e
Val Salles fazem relatos emocionais sensíveis de seus lugares
específicos de fala: a mulher abandonada e o homem
desaparecido. Móveis preenchem o espaço à medida
que a segunda geração o ocupa – e ocupa-se da herança
indesejada entre trivialidades cotidianas.
Cleydson Nascimento e Janaina Matter carregam uma defasagem
emotiva em suas atuações. No caso dele, expressão
da solidão de um rapaz diante de uma sociedade que lhe
oferece como reparo o batismo de um empreendimento imobiliário.
No dela, um tom afetado que gera estranhamento na frieza com
que conta a morte do pai, mas revela uma inabilidade amorosa.
Com as projeções de super8, a encenação recebe um tratamento temporal
imagético. A projeção chuviscada impõe a imagem da ausência, como texturas indiscerníveis
sobre o espaço de ação dos personagens: uma memória borrada.
A inexatidão da memória denuncia-se também no discurso e nas duas variações
da cena final. É a imagem-lembrança bergsoniana: aquela que tornaria possível o reconhecimento de “uma
percepção já experimentada”. “Nela nos refugiaríamos todas as vezes que remontamos,
para buscar aí uma certa imagem, a encosta de nossa vida passada”, diz Henri Bergson. Restaria retraçar
os contornos dessa imagem-memória até torna-la nítida, clara. Até ser possível colocá-la
em movimento.
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